Dragon Ball na Mídia - De olhos quase puxados
ISTO
É, 19/09/2001
De olhos quase puxados
Surge uma nova
tribo, os otakus, jovens viciados em animação japonesa que
vivem num mundo totalmente virtual.
Camilo
Vannuchi
Os pais olham desconfiados. Acham que desenho animado é coisa de
criança, e não de jovens de 20 anos. Os demais garotos da mesma
idade os desprezam. Afinal, só um nerd dispensaria as baladas
para ficar trancado no quarto, devorando quadrinhos japoneses.
Mas quem entra no universo dos mangás, animes, cosplay e garage
kits encontra mil justificativas para não trocar sua paixão
virtual por nada. Quando reunidos em eventos e feiras, cada vez
mais comuns no Brasil, os fãs de animação japonesa podem
exercer sua fantasia sem dar ouvidos aos desaforos de quem não
faz parte da tribo. Em outubro, dez mil pessoas são esperadas
nos três dias da Animecon, em São Paulo, a maior convenção da
turma na América Latina. Lá, alienígenas são os que nunca
ouviram falar em Samurai X ou Evangelium, duas das séries de
desenho animado de maior sucesso no mundo. Não, eles não são
nerds. São otakus (pronuncia-se otákus). A expressão
nipônica, formada com a junção dos termos casa e
você, não tem tradução literal. Seu significado
se aproxima de o outro em seu casulo. O casulo, no
caso, abraça um planeta paralelo, habitado por curiosas figuras
de queixo triangular e olhos esbugalhados.
Consolidada no Japão, a tribo dos otakus se expande em
território verde-e-amarelo, onde já conta com lojas e feiras
especializadas nos quadrinhos e vídeos. Na Rede Globo, três
séries são exibidas nas manhãs de segunda a sexta: Sakura Card
Captor, Dragon Ball Z e Digimon 2. Essas e outras produções
também fazem sucesso na Rede Bandeirantes e em canais pagos como
o Cartoon Network e o Locomotion. No país de origem, centenas de
histórias de mistério, violência e sexo povoam os gibis e os
desenhos animados, assim como romances açucarados. A febre é
tão intensa que a principal revista japonesa de quadrinhos, a
Shonen Jump, atinge a surpreendente marca de cinco milhões de
exemplares semanais. Toda a indústria audiovisual depende dos
otakus. O processo é simples: um mangá (gibi) bem-sucedido vira
anime (desenho animado) rapidamente e logo se transforma em fita
de videogame. Fanzines hentai (eróticos) e garage kits
(miniaturas) com os personagens não tardam a invadir as
prateleiras.
Incentivo As idades dos fãs variam. Pequenos admiradores
de pokémon são otakus, assim como Sérgio Peixoto, o veterano
editor das revistas especializadas Anime Ex e Hanime. Aos 37
anos, ele transformou seu hobby em profissão. E nem sempre foi
compreendido. Meus pais queriam que eu me tornasse um
contador. Para eles, eu ainda não cresci, admite.
Considerado um dos papas dos otakus no Brasil, Peixoto incentiva
os fãs a resistir à enxurrada de críticas. No primeiro domingo
de cada mês, às 10 da manhã, ele leva 200 fãs para o Centro
Cultural São Paulo, onde exibe gratuitamente animes inéditos no
Brasil em uma tevê de 29 polegadas. Peixoto recorda seu primeiro
gibi japonês. Estudei na Liberdade (bairro oriental de
São Paulo) e vivia folheando revistas nas livrarias. Em 1979,
fui trabalhar como office boy e comprei um mangá com meu
salário.
Não raro, fãs se matriculam em cursos de japonês movidos pela
sede de beber direto na fonte. Peixoto aprendeu o idioma sozinho,
com a ajuda de uma tabela com o alfabeto e um dicionário.
Os otakus lêem muito, são grandes conhecedores de filmes
e mergulham de cabeça na cultura oriental. São pessoas
inteligentes e sonhadoras, apesar de tímidas, acredita
ele. Júlia Cleto é uma dessas pessoas tímidas a que Peixoto se
refere. Aos 20 anos, ela encontrou nos quadrinhos sua identidade
secreta, a inocente Sakura Kinomoto, de apenas dez anos. É
uma estudante da quarta série que tem a missão de recuperar 52
cartas mágicas desaparecidas, sempre acompanhada pelo ursinho
Kero, conta. Ela resolveu empregar tempo e dinheiro em um
disfarce da heroína. Travestir-se em personagens dos desenhos é
uma prática comum entre otakus. Os adeptos são chamados de
cosplayers (do inglês, aquele que atua com
fantasia). Até a popstar Madonna resolveu brincar de
cosplayer e, na turnê atual, Drowned World Tour, encarna uma
guerreira japonesa vestindo kimono e peruca preta. Para Júlia, o
cosplay é uma ferramenta para vencer a timidez. Nas
convenções, muita gente vem falar com quem está fantasiado.
Acabamos fazendo amigos, diz.
Foi assim que Júlia conheceu Daniel Sicchi, 22 anos, ganhador de
prêmios de melhor cosplayer nas maiores convenções
brasileiras. No ano passado, Daniel vestiu-se de Goku, o galã da
série Dragon Ball Z, para ir ao cinema. Pareço um E.T. Se
precisar, pinto meu cabelo de loiro por causa do
personagem, diz Daniel, envergonhado por ter seu cabelo
raspado pelos veteranos da faculdade de publicidade. Um
Goku sem a cabeleira amarela não é a mesma coisa, lamenta
o jovem. Recentemente, duas admiradoras fundaram até um
fã-clube para homenagear Daniel. Peixoto explica que isso é
comum entre os aficionados. É o que Freud chamava de
transferência. Os fãs admiram um personagem e passam a desejar
o cosplayer, aquele que está por trás da fantasia, diz.
Às vezes, a atração se torna obsessão e o limiar entre a vida
real e a ficção se dilui na mente dos otakus. O jornalista
francês residente em Tókio Étienne Barral, autor do livro
Otaku os filhos do virtual, destaca a proliferação de
colecionadores de miniaturas de heroínas como indício da
substituição de namoradas reais por companheiras de 15
centímetros de altura. As bonecas, conhecidas como garage kits,
são vendidas desmontadas em caixas de papelão. No Brasil, um
kit nacional custa de R$ 25 a R$ 70, enquanto um importado não
sai por menos de R$ 100. Cabe ao fã modelista montar, lixar,
polir, pintar e envernizar suas heroínas. A palavra-chave
para qualificá-las seria inocência perversa. A
maioria está posta em uma atitude ao mesmo tempo sexy e
assustada, arregalando grandes olhos interrogadores, como se
estivessem surpresas de encontrar-se em trajes menores diante do
olhar de um voyeur autorizado, escreve Barral. Um de seus
entrevistados transforma a boneca em sua amante. Eu prefiro
as bonecas, porque elas são mais puras do que os humanos. Nos
desenhos, nos mangás, as garotas são como deveriam ser,
diz.
Musa Mas o que há de errado em desejar um ser virtual? A
guerrilheira Aki Ross, por exemplo, protagonista do filme Final
fantasy, em cartaz no Brasil, foi eleita pela revista inglesa
Maxim uma das 100 mulheres mais atraentes do planeta no mês
passado. A musa foi inteiramente gerada em computador, mas seus
admiradores nem ligam. O mineiro Marcus Vini, 40, tornou-se um
dos maiores modelistas de garage kits no País. Além de copiar
moldes japoneses, ele comercializa bonecos prontos. Prefere
construir robôs e seres cibernéticos a graciosas garotas de
resina, linha que deixa para o colega de trabalho Celso Ryuji.
Somos dois tarados pelas miniaturas. Minha tara é pela
estética, e não pela sensualidade das peças, mas meus clientes
costumam buscar modelos que os excitem. As mais vendidas são as
personagens em poses sensuais, diz. A miniatura preferida
da coleção pessoal de Vini é Felícia, uma sensual mulher-gata
com garras vermelhas e cabelos azuis. Gosto não se discute. Ou
se discute?
Glossário
Mangá quadrinhos, normalmente em preto-e-branco,
publicados em grossas revistas que devem ser lidas da direita
para a esquerda.
Anime desenho animado baseado
nos sucessos dos quadrinhos japoneses.
Gekigá quadrinhos para adultos,
não necessariamente eróticos
Hentai quadrinhos ou animes de
conteúdo erótico
Cosplay A arte de se disfarçar de personagens de mangás,
animes ou games, assumindo suas roupas e acessórios e imitando
fala e gestos.
Garage kit modelismo de miniaturas dos heróis e,
principalmente,
das heroínas dos quadrinhos.