Dragon Ball na Mídia - Axiologia e Inconsciente Coletivo no Mundo dos Super Heróis

Revista Espaço Acadêmico – Nº 29 – Outubro de 2003 – Mensal – ISSN 1519.6186
Axiologia e Inconsciente Coletivo no Mundo dos Super-Heróis

Nildo Viana*

Em um texto anterior sobre os super-heróis das histórias em quadrinhos[1], apresentamos a tese de que o mundo dos super-heróis tem duas faces: a axiologia (com seu caráter conservador) e a do inconsciente coletivo (com seu caráter contestador). Essa dupla face dos super-heróis revela que o objetivo consciente dos criadores das histórias é determinado pelos valores dominantes e em certos períodos históricos isto se torna mais forte ainda. Entretanto, ao dar vida à história, escapa-lhes o seu domínio total e quando a fantasia se manifesta, o inconsciente individual, e, muitas vezes, o coletivo, também aparece. Os leitores, porém, não são atraídos graças aos aspectos axiológicos e sim pelo aspecto inconsciente.

O aspecto axiológico, isto é, fundado numa determinada configuração dos valores dominantes, sem dúvida, exerce influência sobre os leitores mas em grau muito menor do que se pensa, pois a atenção do leitor fica mais presa não nos detalhes da narrativa que expressam o seu caráter axiológico e sim nos aspectos fantásticos da história (os combates, a luta pelo poder, os tipos de poderes, os mundos estranhos e maravilhosos, etc.). Aqui existe, sem dúvida, alguns elementos axiológicos, pois a luta pelo poder e os combates muitas vezes expressam o desejo de liberdade, a luta contra a opressão, mas outras vezes temos apenas a reprodução da competição típica da sociedade capitalista. Nunca é demais lembrar que a sociedade capitalista tem como um dos fundamentos de sua sociabilidade a competição, sendo uma sociedade essencialmente competitiva[2].

Podemos ver em Dragon Ball uma expressão axiológica da competição, já que seus personagens (Goku, Vendita, etc.) a naturalizam, pois vivem numa luta eterna e infinita por possuir mais força, em ficar com mais poderes dos que os outros. O objetivo é ganhar a competição e isto é tão explícito que inúmeros torneios são inseridos nas histórias, mesmo quando a situação é marcada pelos mais decisivos e mortais combates com “seres maléficos”. Esta característica de Dragon Ball está presente em vários outros desenhos e histórias em quadrinhos japoneses, revelando o papel estruturante da competição na sociedade japonesa, bem como também expressa a competição internacional deste país com os demais países do bloco imperialista mundial. Mas também se pode perceber em Dragon Ball o inconsciente coletivo, tal como colocaremos adiante.

Os aspectos axiológicos da superaventura, e das histórias em quadrinhos em geral, é palco de uma disputa política intensa e isto é tão verdadeiro que a intervenção do estado neste tipo de produção, visando manter a “moral e os bons costumes”, produziu uma extensa legislação restritiva a respeito[3].

Mas, ao contrário do caso dos heróis, onde surgiram vários “heróis revolucionários” e “contestadores”, no mundo dos super-heróis quase não há contestação consciente. Poderíamos dizer que existem poucos super-heróis contestadores, tal como Namor, O Príncipe Submarino – que sempre aparece na superfície terrestre para combater a poluição e destruição ambiental que afeta os mares. Porém, as últimas histórias de Namor provocaram uma reviravolta neste personagem. Este, em seu passado, chegou a se unir com O Incrível Hulk para derrotar Os Vingadores – grupo de super-heróis comandado pelo Capitão América e que teve diversas formações, sendo que a formação desta época contava com o Homem de Ferro, Thor, Homem-Formiga, entre outros –, um grupo tão bem visto pelo poder que tinha sua sede fornecida pelo governo dos Estados Unidos. As últimas histórias deste super-herói apresentaram sua reformulação e sua personalidade foi alterada. O seu “ódio contra a humanidade” (na verdade contra suas ações destrutivas e irracionais) foi explicado por um “desequilíbrio sangüíneo” que provocava “flutuações de personalidade” (em especial sua ira...) e um dispositivo de reciclagem “corrigiu o problema”. A partir daí Namor não seria mais o mesmo: tornou-se calmo e controlado como qualquer outro super-herói conservador.

A luta cultural que existe nos demais gêneros das histórias em quadrinhos está praticamente ausente no mundo dos super-heróis. Neste mundo, criado a partir de um contexto histórico preciso e voltado para satisfazer necessidades de uma nação em guerra (os primeiros super-heróis da história – Super-Homem e Capitão América – surgem nos Estados Unidos, tanto os da Marvel Comics quanto os da DC Comics, e só depois começam a ser criados também em outros países e só nestes casos começam a romper com o conservadorismo exacerbado existente nos EUA), não se poderia esperar nenhuma mudança revolucionária consciente. Tal mundo se desenvolve de forma ligada às grandes empresas oligopolistas, mantendo íntima relação com o poder. Isto esvaziou o seu conteúdo crítico consciente.

Por outro lado, em nenhum gênero de história em quadrinhos se encontra a presença tão marcante do inconsciente coletivo como na superaventura. E isto ocorre ao lado, muitas vezes, de construções que revelam uma forte construção axiológica, tal como Dragon Ball. Neste pequeno submundo de super-heróis, temos Goku, personagem central, assumindo muitas vezes uma forma infantil, o que contesta o que Lapassade chamou de “o mito do adulto-padrão”[4]. Uma sociedade marcada pela competição e burocratização das relações sociais, com o predomínio da “sobriedade” e formalismo, a infância é um período no qual este mundo ainda não está diretamente presente e assim ela passa a ser refúgio imaginário da recusa deste mundo. Ao lado disso, evidentemente, temos a expressão axiológica da necessidade de superação da infância, tal como no caso de Gohan, filho de Goku, que é pressionado pela mãe para estudar, ser um “cientista famoso”, isto é, se preparar para entrar no mundo adulto. Também em Dragon Ball temos uma expressão inconsciente do desejo de liberdade, tal como se vê na permanente busca de superação dos limites, e no desejo de justiça, que é algo reprimido em nossa sociedade, pois, ao lado das mais intensas e extensas formas de injustiça, tal desejo não pode se manifestar, já que isto provocaria inúmeros conflitos e comprometeria o “funcionamento normal” da sociedade capitalista. E isto é mais grave ainda quando muitos seres humanos cometem atos de injustiça devido aos seus valores, a competição

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[1] Viana, Nildo. Super-Heróis, Axiologia e Inconsciente Coletivo. In: Quinet, A.; Peixoto, M. A.; Viana, N.; Lima, R. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano. Goiânia, Edições Germinal, 2002. Veja também: Viana, Nildo. Super-Heróis e Axiologia. Revista Espaço Acadêmico. Nº 22, Março de 2003; Viana, Nildo. Super-Heróis e Inconsciente Coletivo. Revista Espaço Acadêmico. Nº 25, jun. 2003.

[2] Cf. Viana, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. In: Quinet, A.; Peixoto, M. A.; Viana, N.; Lima, R. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano. Goiânia, Edições Germinal, 2002

[3] Cf. Marny, J. Ob. cit. A censura oficial aos quadrinhos, como não poderia deixar de ser, assumiu um caráter extremamente conservador. No Brasil, o Código Moral que rege as Editoras especializadas tem os seguintes itens: “as histórias em quadrinhos devem ser um instrumento de educação, formação moral, propaganda dos bons sentimentos, a exaltação das virtudes sociais e individuais; é necessário o maior cuidado para evitar que as histórias em quadrinhos, descumprindo sua missão, influenciem perniciosamente a juventude ou dêem motivo a exageros da imaginação da infância e da juventude; não é permitido o ataque ou a falta de respeito a qualquer religião ou raça; os princípios democráticos e as autoridades constituídas devem ser prestigiados, jamais sendo apresentados de maneira simpática ou lisonjeira os tiranos ou inimigos do regime e da liberdade” (Cirne, Moacir. A Explosão Criativa dos Quadrinhos. Petrópolis, Vozes, 1974, p. 11).

[4] Lapassade, Georges. A Entrada na Vida. Lisboa, Edições 70, 1975.